terça-feira, 24 de março de 2015

Quem manda adoecer o cerebro?


“Trabalho em psiquiatria há 30 anos e ainda não sei muito bem o que é isso da loucura”  - Afirma José Salgado.


Psiquiatra fala da fronteira da loucura, das doenças mais comuns e dos sinais precoces. Mas também da crise que pode estar a alimentar a epidemia da depressão. E não é financeira.



A Semana Internacional do Cérebro foi o motivo para procurar respostas sobre a doença mental. José Salgado, director clínico do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, aceitou ser o guia numa área complexa e fala dos sintomas e da prevenção, da insensibilidade que o choca e do estigma, que continua a fazer com que os doentes tenham de se esconder no trabalho.


Se o cérebro comanda todos os órgãos, quem o manda adoecer?
Penso que o temos de ver mais como constituinte, em permanente interacção. Vamos supor uma pessoa cujo fígado e rins não funcionam enquanto filtros ou o coração não bombeia bem o sangue para o cérebro. Pode ter problemas cerebrais, quer por ficarem em circulação substâncias tóxicas ou não havendo uma adequada oxigenação. Ou seja, o cérebro adoece da mesma forma que os outros órgãos, por razões genéticas ou adquiridas, sendo que estas também interagem. Mas é curioso: por vezes pensa-se que a depressão só existe se houver uma causa externa. Não é verdade: há pessoas deprimidas sem factos negativos nas suas vidas.
Imagino que seja algo ainda mais desvalorizado.
No geral a depressão ainda é toda muito desvalorizada. Ainda há muito a ideia de que basta ter força de vontade quando o problema reside nessa incapacidade. É como dizer a um atleta com o pé torcido que para superar a lesão tem de correr.
Das doenças mentais a depressão é a mais incompreendida?
É mais comum. É das maiores causas mundiais de incapacidade. Condiciona o prognóstico de doenças físicas, sejam infecciosas, oncológicas ou auto-imunes. Por ser tão abrangente é muito incompreendida.
Porquê? Por confundir-se com tristeza?
Acho que a razão será a mesma em todas as doenças mentais. O estigma sempre existiu. Passe o excesso, a grande diferença em relação à atitude na Idade Média e hoje em dia é que na Idade Média queimavam-se literalmente os doentes. Hoje queimam-se socialmente.
Que relatos lhe chegam?
Muitas pessoas têm de esconder no trabalho que têm uma depressão, se não são discriminadas. Mas se formos para outras doenças ainda é pior. Vemos políticos, comentadores e jornalistas a usar o termo esquizofrénico como insulto. O mesmo se passa quando se diz que alguém mais irascível é bipolar. O estigma e desvalorização são notórios no dia-a-dia.
O que é que isto diz sobre o país?
É um problema mundial. Acho que no fundo é um reflexo do medo que vem da ignorância. Se falarmos com uma pessoa com esquizofrenia vemos que tem uma história muito semelhante à nossa. Tem apenas um determinante biológico que favoreceu a doença. É essa proximidade que assusta a sociedade.
A curta distância da loucura?
Exactamente. Trabalho há 30 anos em psiquiatria e ainda não sei muito bem o que é isso da loucura. Muitos doentes que vemos e são oficialmente doentes são menos loucos, passe a expressão, que pessoas que vemos fora deste contexto. Não há uma fronteira exacta. Quando dou aulas traço uma linha em que num extremo está o zero (a ausência absoluta de doença) e o infinito (a pessoa completamente doente. E depois traço a área das pessoas normais, antes do meio da linha. Não há ninguém que esteja no zero porque todos temos traços de personalidade, que maximizados seriam doença. Traços obsessivos, depressivos. Há pouco falou da tristeza. O que é a tristeza normal? É normal que a pessoa quando tem uma perda fique triste, mas nem todas as pessoas que têm a mesma perda têm o mesmo nível de tristeza. E até há pessoas que não têm perdas e têm tristeza e pessoas que têm grandes perdas e passam bem.
Na psiquiatria existe mais tentativa e erro que noutras especialidades?
Não. Algumas doenças como a depressão crónica deixam marcas no cérebro e quando prescrevemos por um exemplo um antidepressivo fazemo-lo consoante o tipo de depressão, se há mais queixas do tipo físico ou não, maior ou menor insónia, mais ou menos ansiedade, a hora do dia em que a pessoa está mais deprimida. Muitos mecanismos só foram identificados depois dos primeiros medicamentos nos anos 50, mas hoje há muita informação.
A depressão é o problema mais comum. No futuro serão as demências?
Ainda bem que as pessoas estão alerta porque com o aumento da esperança de vida há de facto mais demências, já que na maioria das vezes estão ligadas ao envelhecimento. Mas os últimos dados indicam que nos países mais desenvolvidos tem havido uma diminuição dos casos, pelo que poderá não ser tão expressivo.
Qual é a explicação?
Provavelmente a melhoria das condições de vida, aspectos nutricionais, exercício, o estímulo a nível intelectual. É de qualquer forma um dado positivo.
Mas o aumento da carga de doença mental não pode favorecer a demência?
Sim. Sabemos que qualquer doença que provoque danos cerebrais pode favorecer o aparecimento da demência. Acontece com a depressão crónica mas também pode surgir com traumatismos cranianos, AVC e até há demências ligadas aos enfartes múltiplos, que geralmente até são quadros mais rápidos do que o de Alzheimer.
E isso, aliado por exemplo ao stresse, não pode inverter essa boa tendência?
Sabemos que exercício e dieta equilibrada são factores protectores. O bom seria começar a prevenir aos 15 anos mas só à medida que as pessoas vão ficando mais velhas é que têm mais cuidados. Claro que o stresse é um factor gerador de múltiplos problemas. Não sei se associá-lo à demência contudo não será excessivo. Mas há uma coisa a ter em conta: no meio desta sensibilização as pessoas esquecem-se que o envelhecimento traz diminuição da memória, da concentração, que é natural.
Qual é aqui a fronteira do normal?
Sabemos que aos 80 anos há uma diminuição de 10% da parênquima cerebral em pessoas normais.
Tal como as pessoas mirram com a idade, o cérebro encolhe?
Sim. E isso é natural que cause maior confusão mas as pessoas ficam assustadas com medo que seja demência.
No geral, que sinais de doença mental são mais desvalorizados?
Nas fases muito precoces da depressão as pessoas começam a sentir menos prazer nas coisas. Pode ser um sinal de alerta. Gostavam muito de fazer desporto mas deixa de lhes apetecer e não vão um dia, dois, três. Se o desinteresse começa a aplicar em várias coisas devem procurar ajuda. E outra coisa que as pessoas sabem mas escondem tem a ver com o aumento da ansiedade. Por vezes até há repercussões físicas mas, em vez de procurar ajuda, começam a abusar dos ansiolíticos, que não tratam e causam habituação.
E dos medicamentos para dormir.
E nisso há algo que parece paradoxal mas não é: os problemas de insónia não se tratam com comprimidos para dormir. São um apoio pontual, só isso. Costumo dizer que temos alguns de milhares de toxicodependentes de 70 anos e com um ar simpático. São as pessoas que vão às consultas com o seu saquinho dos medicamentos e há sempre dois ou três calmantes. É um problema grave: são pessoas mais velhas que vivem sozinhas e querem ir para a cama às 19h e dormir até às 9h, 14 ou 15 horas, quando é sabido que os idosos dormem menos. O perigo é que a toma de ansiolíticos provoca alterações a nível cognitivo que podem favorecer o aparecimento de demência.
Nas demências, que sinais precoces devem ser valorizados?
Situações em que a memória recente e imediata começa a estar afectada, portanto não lembrar o que se fez há cinco minutos ou acabou de fazer. Aí vale a pena fazer uma TAC e ver se há deterioração cognitiva. Há uma relação directa entre depressão e demência não só por haver alterações que aumentam a susceptibilidade mas porque em idades avançadas há depressões em que parece que a pessoa tem uma pseudociência e com medicação melhora, o que não acontece na demência. São situações que importa despistar.
Não é possível reverter a demência?
Não, os fármacos contribuem para retardar. Mas há coisas que podem ajudar a melhorar a qualidade de vida como o exercício. Torna o organismo mais resistente mesmo nos aspectos imunológicos. Basta 15 a 20 minutos de caminhada diária.
Que outros cuidados deve haver?
Uma coisa que nos idosos aumenta a confusão mental é que, precisamente por terem menos concentração, lidam mal com a mudança. Há muito o hábito de passarem temporadas em casa dos filhos. Uma pessoa que tem alguma deterioração se anda sistematicamente a mudar de casa, de cama e de vizinhos vai confundir-se naturalmente. Deve evitar-se que o idoso ande sempre a trocar de casa e, a circular, que esteja pelo menos três a seis meses em cada sítio. Já tive casos em trocavam todas as semanas, por cinco e seis filhos.
Qual é a doença mais angustiante?
Para o próprio nas idades mais jovens é a esquizofrenia e nas mais avançadas a demência.
Na esquizofrenia, também é duro para os filhos pensar no risco da doença.
Sim mas mesmo nos casos em que ambos os pais são esquizofrénicos a probabilidade não ultrapassa os 50%. E olhando para gémeos iguais mas criados por famílias diferentes um desenvolve e outro não. Tendo ambos o mesmo componente biológico foram aspectos psicossociais que determinaram o aparecimento. É um chavão mas na saúde interagem factores biológicos, sociais e psicológico. Nos factores externos, outra realidade a que se deve dar mais importância é o efeito da canábis no aparecer de casos psiquiátricos.
Têm muitos jovens com esse problema?
Temos uns 10 ou 15, dos 14 anos aos 25/30. Estima-se que 15% a 20% da população terá susceptibilidade genética para desenvolver psicose com a canábis. Temos as psicoses tóxicas, que duram seis meses e passam se não tornar a consumir. Mas depois há casos graves de esquizofrenias que se não fosse aquele empurrão nunca apareceriam, portanto evitáveis.
Que casos é que o impressionam mais?
Todas as especialidades têm casos graves. O que me impressiona mais não é a doença, é a estupidez muitas vezes dos familiares e amigos. Mas quando a família que deve ser um aliado, não reconhece e abandona pais ou filhos nos hospitais e dá respostas como eu já ouvi dizer à filha de uma doente: “que o Estado tome conta dela que eu pago os meus impostos”…
A doente tinha o quê?
Doença bipolar estabilizada. Mas como tinha 70 anos… Mas também temos pais que dizem isso dos filhos e temos casos desses no hospital, de pais que recusam levar os filhos.
Como foram os últimos quatro anos de crise no consultório?
Foi um abanão. Pensávamos que íamos ter mais que os nossos pais, os nossos filhos mais que nós. De repente vimos que não era assim e viu-se a crise como coadjuvante de quatros depressivos. Ouvimos falar de desemprego, problemas nas empresas, desagregação das famílias. Agora não posso dizer o aumento da depressão seja exclusivamente atribuível à crise. Há quem fale de epidemia mas tem ocorrido também em períodos de maior abundância.
Consequência da mudança de valores?
Certamente, consequência deste mundo. De uma competitividade desenfreada, do culto do individualismo. Isto de para alguns ser dramático não ter dinheiro para comprar um plasma e continuar com a televisão antiga. Acho que o estado civilizacional estará por detrás do fenómeno.
E com a poeira da crise a assentar, como saímos disto?
Às vezes perguntam-me como se previne a depressão. Há, como em tudo, uma resposta simples e outra complicada. A simples é melhorando o bem-estar e felicidade. Se a pessoa tiver susceptibilidade mas uma vida boa resiste melhor. A resposta complicada é olhar para a sociedade e perceber que a certa altura passámos a ser um grupo de pessoas que estão no mesmo sítio mas cujos laços se foram esboroando. Olhamos cada vez menos para o que se passa ao nosso lado e, se for algo que incomode, menos ainda. Se voltássemos a ser uma sociedade as coisas melhorariam.
Portanto não vê nada de terapêutico nos últimos anos.
Não. E por isso vemos mais pessoas com necessidade de largar tudo, de romper.
Recomenda?
Se quiserem e tiverem capacidade.
Nunca é tarde?
Com certeza. Há uns anos um senhor levou a mãe à minha consulta. A senhora tinha 75 anos e ele achava que devia estar demenciada porque queria divorciar-se do pai. Ela estava tudo menos doente: dizia não queria morrer ao lado de um marido que lhe tinha dado cabo da vida. Queria recomeçar e estava determinada. Temos de perseguir sonhos, não o fazemos mais pelo medo do risco. Queremos ter a certeza antes de tentar. Chamo-lhe fazer batota para perder, as pessoas armadilham-se no seu caminho. Às vezes não têm de ser mudanças radicais.
Marta F. Reis, in Jornal I

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